mulheres de axé, justiça e outra coisa
by
ana laura silva vilela
(English Translation Available Soon)
Apresentação
As “mulheres de axé” consistem em uma multiplicidade reivindicada por mulheres de diferentes comunidades sagradas afro-brasileiras. Suas corporalidades e enredos comunitários formulam uma ancestralidade afro-diaspórica e enfrentam a violência colonial contra suas existências, seja na forma de intolerância religiosa ou racismo religioso. Esquadrinhadas por uma analítica da racialidade nos primórdios da antropologia e criminologia brasileira, as mulheres de axé convivem com o paradoxo de serem mobilizadas para dentro do imaginário nacional, a exemplo da figura da baiana e da mãe preta, e ao mesmo tempo serem alvo de agressões de um Estado Colonial: invasão e destruição de templos, ocupação neopentecostal da mídia e do poder público, e tentativas permanentes do controle estatal de suas práticas.
Este ensaio conjura cenas e cortes de uma tese de doutorado intitulada Mulheres de Axé: Justiça Epistêmica nas experiências das ialodês, em que dialoguei meu campo de formação, o Direito, com as vidas de duas mulheres de terreiro, especificamente de candomblé, uma ialorixá e uma ebome de Salvador Bahia1. Para isto, recorri a diversas trocas teóricas, entre artes visuais, literatura antropológica, feminismos negros brasileiros e a contribuição de algumas autoras atuantes predominanentemente na academia estadunidense num grupo que tem se conhecido por feministas da recusa.
Acolher o mandamento do feminismo negro de que vidas de mulheres negras oferecem projetos de justiça, não significa que seja qualquer justiça. Depende de outra coisa. As vidas das mulheres de terreiro reposicionam diferentes saberes em seus corpos, indumentárias e práticas, esgarçando fronteiras de tempo, público/privado e sagrado/político. E se estas mulheres exigem e disputam léxicos de Estado, neles não se esgotam, elaborando sobre “outra coisa”. É sobre esta “outra coisa”, insubmissa e impronunciável, que este ensaio elabora.
Desse modo, o ensaio mobiliza quatro cortes. Na primeira parte exploro os limites da justiça que pode ser enunciada quando diante dela estão as mulheres de axé. Em seguida, comento a respeito da ancestralidade que informa as vidas das mulheres de axé. Finalmente, a justiça dialoga com as experiências de duas mulheres de axé: a recusa de Fausta em seu encontro com o racismo científico de Nina Rodrigues e a poeta e ialorixá baiana Lívia Natália em sua poesia encharcada na episteme de Oxum.
1.Justica e Outra Coisa
O desfazer da trama começa com ela mudando o curso, com um caminho errante, com ela se perdendo no mundo. O desfazer começa com uma fuga para a floresta, com uma liberdade extremamente perigosa, com aquilombamento, com o caminhar para dentro d’água. Não começa com proclamações ou constituições ou decretos ou apelos ou um lugar à mesa ou uma vez no jogo. Saidiya Hartman, “A trama para acabar com ela”.
Deve-se ao ensaio Crítica à Violência: crítica do poder, escrito em 1921 por Walter Benjamin, uma afirmação imediata do Direito enquanto violência, seja de instituição ou de manutenção de sua ordem. Há algo nesse ensaio que provocou pensadores e pensadoras importantes ao longo do século XX, e que é ponto de partida para as principais contribuições de justiça de que me valho neste texto: Jacques Derrida e Denise Ferreira da Silva.
A confiança na afirmação benjaminiana, tantas décadas depois, não é pelo caráter profético do ensaio. Derrida, por exemplo, recupera a exposição da violência do momento fundador do Direito – seja nas formas do Estado, da polícia, e na repetição da violência em autoridade – oferecida por Benjamin para “manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça” (37-8). Se por um lado Derrida caminha com Benjamin na revelação da violência que impõe o Direito, ele a diferencia da ideia de força. A força teria a ver com a justiça, a qual existe em diferença ao Direito:
Como distinguir entre essa força de lei, essa “força de lei” como se diz tanto em francês como em inglês, acredito, e por outro lado a violência que julgamos sempre injusta? Que diferença existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em todo caso julgada legítima (não apenas o instrumento a serviço do direito, mas a própria realização, a essência do direito), e, por outro lado, a violência que julgamos injusta? O que é uma força justa ou uma força não violenta? (9)
A partir de tais escavações sobre os sentidos de Direito, força e justiça a partir do texto de Benjamin, já se pode notar a distinção central do argumento de Derrida: Direito e Justiça não são a mesma coisa. E aqui, proponho lidarmos com esta diferença não através das perguntas mais comuns que a “constrição telepática”3 (Mombaça e Matiuzzi, 15) das teorias jurídicas modernas convém fazer, por exemplo, a respeito da origem do Direito na Justiça, ou de um ideal regulador de justiça (De Ville), entre outras. Quando Derrida afirma que o “direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável” (30), abre-se a possibilidade para outras especulações em torno do conceito de justiça.
Mas nos detenhamos ainda na aposta da justiça como incalculável e “experiência impossível” (Derrida 29-30). De um lado haveria uma “justiça (infinita, incalculável, rebelde às regras, estranha à simetria, heterogênea e heterotópica)”, em outra parte repousaria “o exercício da justiça como direito, legitimidade ou legalidade, dispositivo estabilizável, estatutário e calculável, sistema de prescrições regulamentadas e codificadas” (41). Contudo, esta distinção não é desculpa para que não se busque a justiça, ao contrário “é um aumento hiperbólico na exigência de justiça, a sensibilidade a uma espécie de desproporção essencial que deve inscrever, nela, o excesso e a inadequação” (37-8).
Há ainda, na concepção de justiça delineada por Derrida, uma dimensão que preciso destacar. Trata-se da localização do direito e da justiça no empreendimento central da filosofia derridiana – a desconstrução:
Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstrutível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado. Que o direito seja desconstrutível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo histórico. Mas o paradoxo que eu gostaria de submeter à discussão é o seguinte: é essa estrutura desconstruível do direito ou, se preferirem, da justiça como direito, que assegura também a possibilidade da desconstrução. A justiça nela mesma, se algo como tal existe, fora ou para além do direito, não é des- construivel. Assim como a desconstrução ela mesma, se algo como tal existe. A desconstrução é a justiça (26-7).
Interessa aqui, acompanhar Derrida na constatação de “a desconstrução ocorre no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito” (27). Sobre este intervalo, sobre a justiça ser o caminho entre o que pode ser desconstruído e o que não o é, torna-se difícil não ser acometida pelas imagens de um itan que Verger descreve sobre as iamís, as proprietárias do pássaro e do poder feminino na origem do mundo:
Na história VI do odú ogbè ògL, as iyàmi – ęlęye, chegando ao mundo, vão empoleirar-se, como na história precedente, sobre sete espécies de árvores, sucessivamente. Sobre cada uma dessas árvores elas têm atividades de caráter diferente. Sobre três delas, elas trabalham para O bem; sobre três outras, elas trabalham para o mal; sobre a sétima, elas trabalham para o bem e para o mal. Isto tende a nos mostrar que para os iorubás o poder – àse (axé) – em si mesmo nem bom nem mau, nem moral nem perverso; só a maneira como o axé é empregado é que importa (Verger 18).
Primeiro, é preciso recordar que a violência epistêmica posicionou de forma maniqueísta as mães pássaros e várias das categorias da presença iorubá no mundo. As imagens das iamís se movimentando entre árvores oferecem uma alegoria bem ajustada ao intervalo ocupado pela justiça entre os momentos da desconstrução derridiana. Além disso, evocam o que Thiago Hoshino elaborou como “virar” o direito no santo (e por que não a justiça?). Convoca a espreitar o que a justiça vira ao fazer-se atravessar pelas forças, pelo santo, pelo voo rasante e arrasador das eleyés, e a pensarmos no poder destrutivo e procriador atribuído a elas, em vez da redução “bem e mal”. E se pensarmos no destrutivo enquanto “performance generativa de uma leitura abolicionista para o mundo” (Mombaça e Matiuzzi 17)? Elas seguem voando então, entre o destrutivo e o criador, entre a justiça calculada do direito e a justiça do impronunciável. Entre morte e vida (póstuma), entre fazer morrer e fazer viver, até mesmo na morte. É nesse voo que consiste a justiça, no porvir, “possível como uma experiência do impossível, ali onde, mesmo que ela não exista, se não está presente, ainda não ou nunca, existe a justiça” (Derrida 27).
Encontro caminho para seguir com as especulações de Denise Ferreira da Silva (“Speculations”) na constatação complexa sobre a impossibilidade da justiça. A autora também partilha da noção de direito como significante de violência/negridade4 acerca da indissociabilidade entre sujeito transparente e violência racial. Entretanto, é no título de seu principal texto sobre o tema que se apreende a formulação derridiana já de partida: “A ser anunciado: Uma práxis radical ou conhecer (n)os limites da Justiça”. A contribuição da autora desvela as arquiteturas jurídicas da modernidade a partir do corpo sexual da nativa escravizada e do que há de incompreensível e irrepresentável nela. Tais características desta ferramenta epistemológica servem também para expor que a justiça, quando entendida como direito, é resolvida sempre como violência. Por outro lado, se a justiça for entendida pelo seu impossível, assim como proposto por Derrida, o corpo sexual da nativa escravizada anuncia que só é possível conhecer os e nos limites da justiça, quando ao revelar a violência total das arquiteturas ético-jurídico modernas, também esse irrepresentável pode vaguear e conduzir a outras imaginações sobre a justiça (Ferreira da Silva A Dívida Impagável, 2019).
Diante da cena do conhecimento moderno em que não foi considerada5, em que foi reduzida a nada, o corpo sexual da nativa escravizada não está interessado apenas em expor a insuficiência das categorias modernas, especialmente do sujeito. O projeto da autora se engaja na articulação entre valor, isto é, “a igualdade formal que orienta as determinações jurídicas (da lei e do Estado) e a formalização da violência operada pelo conhecimento científico (racial)” (“Speculations”). Ele, o corpo dela, ao adentrar a cena do conhecimento exige outras perguntas e gestos:
A questão é, então, se os mecanismos de justiça existentes, nomeadamente o administrativo e o executivo – ambos os quais prevaleceram durante toda a vida das arquiteturas liberais que sustentam o capital, nas suas últimas iterações – têm estado alheios à violência racial, o que seria da justiça se a racialidade entrasse na sua formulação? Será que produziria um programa para a realização da justiça – um plano para forçá-la a lidar com as violações, as injustiças, que proliferam na existência global – que não se baseasse no obscurecimento de como existe o valor total expropriado do trabalho escravo e das terras nativas? Agora como capital global? ("Speculations" tradução própria).
O manejo complexo de categorias e fenômenos é para pensar a justiça em seus limites — nos limites e nos entranhamentos das arquiteturas ético-jurídicas, das categorias onto-epistemológicas e da matéria. O corpo sexual da nativa escravizada mostra, portanto, tudo o que a justiça não pode. Mas dentro de sua intragabilidade pelo texto moderno, nos limites da justiça “a corpo cativo na cena da subjugação” (Ferreira da Silva A Dívida Impagável, 2024) abala o pensamento e se permite vagar. Se por um lado Derrida localizou a justiça no deslocamento entre o que pode ser desconstruído e o que não, o que jamais será, quando a corpo cativa na cena da subjugação adentra os léxicos da justiça ela leva uma tarefa e re- elabora a noção de justiça não mais enquanto desconstrução. É outra coisa. Diz respeito ao mandato de Fanon em Os Condenados da Terra6, segundo o qual não existe o novo quando se pensa da velha forma, pelas formas do (velho) mundo como o conhecemos:
Com \X, eu ilustro o que se torna possível quando a negridade especula e vagueia no mundo, atendendo ao mandato ético de desafiar nosso pensamento, de liberar nossa imaginação e dar boas-vindas ao fim do mundo como o conhecemos, isto é, descolonização, que é o único nome adequado à justiça (Ferreira da Silva “Hackeando” 198).
“\X”, “a Coisa”, “Excesso”, “corpo sexual da nativa escravizada na cena da subjugação”, “a corpo cativo na cena da subjugação”; são muitos os nomes que a presença da racialidade e do que não é representado no texto moderno são ensaiados no texto de Denise Ferreira da Silva. Ao centralizar a racialidade como categoria privilegiada de análise do texto moderno, as especulações (“Speculation”) desta autora em torno da noção de justiça explicam como é epistemológica, mas mesmo assim material, sendo que só se pode conhecê-la diante de sua não realização (Ferreira da Silva, A Dívida Impagável 2019). E se a justiça pode ser entendida como desconstrução quando não se centraliza a raça, vista pela “Coisa” ela só pode significar descolonização, um processo de conhecimento e de uma práxis. Dessa forma, o corpo sexual da nativa escravizada na cena da subjugação é uma ferramenta epistemológica porque não apenas expõe, mas também perverte a cena através da poética feminista negra.
2. Ancestralidade e Matéria
Na palestra “Iyá Tundé: a Mãe que voltou” proferida no II Seminário Mulher, Mito e Riso em 2020, Ebome Vanda Machado ajunta de forma irrepetível a ancestralidade afrodiaspórica às vidas das mulheres e a uma noção muito particular de tempo. Revisita a (sua) iniciação (em barco) como o grande legado que as mulheres de terreiro ofereceram para seu povo.
Hoje eu vou falar, o título desta minha prosa é Iyá Tundê, Iyá Tundê. Iyá Tundê significa na língua iorubá, a mãe que volta. Isso significa que para que eu estivesse, para que eu possa estar aqui hoje, muitas mulheres foram para a ancestralidade para que outras voltassem. (...) Eu vou falar da iniciação, para falar da iniciação, eu resolvi falar da minha iniciação, de como que eu fui iniciada.(..) O dia da iniciação, pra início de conversa é inesquecível. Eu ainda me vejo como naquele momento com todos os sentidos muito aguçados, vendo os mais velhos ficarem ansiosos, circunspectos, e muito ativos. Os sons e os cheiros vinham da cozinha e enchiam a casa. Tudo o que significava algo que estava para acontecer, que eu não sabia o que era até o ar que eu respirava mobilizava o segredo que eu não conhecia. O cacarejado os bichos, o bater das tampas das panelas, o moinho ligado, o burburinho da cozinha, o abre e fecha das portas e das malas. As águas saindo das torneiras, sendo despejadas nos potes, os ebós, os defumadores, tudo, tudo me movia naquele momento. Tudo me movia. Era um final de tarde e o sol já tinha caído e as primeiras aves já estavam se aconchegando. Era um final de tarde e o cheiro mágico da alquimia das folhas e o som do pilão me inebriava, me fazia perguntar sempre: e agora? E agora? Como saber “e agora”? A iniciação tem segredos sagrados, então o “e agora” tem que ficar mesmo para mais tarde. Impressionava a batida do pilão. Eu não sei se vocês já viram a batida de um pilão. O pilão, ele bate como a batida de um coração. Ele bate tam-tam, tam-tam, tam-tam, e essa batida do coração sempre uma maior e uma menor; uma maior e uma menor, parece de verdade a simetria das batidas do coração e algumas davam e seguravam o meu que estava aos pulos. Era o dia da minha iniciação. É chegada a hora e tudo que acontecia naquele momento era um silêncio. Um silêncio. Um silêncio absoluto. No dia da iniciação nós sentimos um silêncio, mas também uma apreensão de todas as realidades. Tudo dá um sentido, um sentido que é grande, um sentido que parece maior do que o que nós estamos sentindo e é uma desordenação. Eu estou fazendo um esforço para ordenar a desordenação daquele dia. A leveza do silêncio também traz uma enorme concentração de energias. E assim a imanência do que sempre teve em potência dentro de mim aflora e me permite me perceber e perceber tudo como atos e cenas da vida. Mas são atos que só estão presentes na minha mais remota memória. Havia uma dúvida: “eu estou vendo?”; “eu estou ouvindo?”; “eu estou fazendo”? “Que memória é esta?” Ou “que realidade é esta?” Tudo se fez presente plenamente. Muitos gestos se fizeram presentes, mas com cantigas, gestos significativos, rezas e silêncios. Silêncios e cuidados de todas as mulheres mais velhas da casa. (...) E durante dias e dias eu estive a experimentar o calor da terra, a terra que nos sustenta e alimenta e um dia vai nos acolher sem vida. A terra passou a ter outro significado para mim. De vez enquanto eu tocava na terra. A terra. E sentia um prazer, um amor, uma… uma outra relação. A terra. “Tem que morrer pra germinar”. “Plantar nalgum lugar”. Eu estava plantada. Eu estava plantada. Plantada na terra. A noite do dia vinte e seis de julho foi longa, longa, longa. Foi muito longa. O tempo passeava sem pressa e eu estava completamente entregue e alheia a qualquer tipo de pressão. Agora eu experimentava era um tempo sem medida, mas tinha… era o meu tempo. Era o meu tempo. Era algo tão particular que eu não teria como falar deste meu tempo. (...) Éramos oito mulheres, oito mulheres. O barco era de oito mulheres. Mas terminou nove, porque um menino nasceu. O menino da minha irmã Rita, aí ficamos nove. Ele já nasceu feito. Ele foi feito na barriga da minha irmã. O barco… E eu pensava muito, sempre pensei o barco… Por que barco? Barco de iaô, um barco...? O que significa barco? Por que barco? A imagem do barco vinha e voltava a todo momento. (...)Iyá Tundé é a mãe que volta, é a volta da anciã que morre e é festejada na chegada como a primeira menina da família, uma menina da família. Que anciã teria ido para o Orun, pra que eu voltasse, daquele jeito, naquele dia, com aquela alegria? De verdade, a morte acontece para o povo africano, como uma celebração da vida. “A morte é uma festa”, assim como escreveu nosso mestre João Reis. A morte é uma festa, e cada vez que eu penso naquele momento eu ainda penso, exaltadas sejam sempre as primeiras mulheres pretas que desterradas do continente africano, escravizadas, e muitas já renascidas e deixaram como legado maior para nós povo preto, o maior ritual que faz o encadeamento de todos os sentidos, o encadeamento das muitas subjetividades que guardamos e que fazem o caminho para a transmutação. Para a dignidade humana que temos por esta iniciação e que por sorte nossa não ficou perdida nos porões dos navios negreiros. Tudo estava de volta no meu ser. Porque elas, as mulheres pretas, da África, trouxeram além dos seus braços fortes para o trabalho, trouxeram segredos, sagrados, que vieram muito guardados, entre a pele e a carne. O barco de iaô é assim. E o meu barco, iaô, até hoje, ele vem desenrolando o fio do tempo, no sentido contrário dos barcos que trouxeram nossas mães ancestrais. Os dias se passaram, os dias pareciam grandes. Ao longo dos dias e dos rituais, e cenas muito antigas, que não dá para expressar aqui, me perdoem. Mas tudo acontecia como expressões reais do meu ser e da minha existência, repleta de uma ontologia poética, mas desveladora. Eu começava a pensar, quem sou eu? Uma mulher preta, de Oxum, que tinha passado tudo que outras mulheres passam, mas isso, é outra história (“Iyá Tundé”).
A leitura atenta desta narrativa convoca aos diversos sentidos dos projetos de justiça a partir das vidas das mulheres de axé. A justiça que se anuncia aqui, essa “outra coisa”, tem a ver por princípio com a noção de ancestralidade que demanda uma compreensão complexa de tempo.
Ancestralidade também é um jargão muito repetido, mas pouco elaborado diretamente, na verdade de delimitação delicada, que se impôs a esta pesquisa. Como conceber ancestralidade, quando tantos e diferentes grupos, inclusive com apropriação hegemônica, reivindicam suas ancestralidades? De início, é preciso demarcar que Ebome Vanda fala no texto transcrito acima, e que as cosmovivências do povo de santo se fundamentam, numa ancestralidade afrodiáspórica. Isso significa tanto pôr em prática princípios comunitários africanos que concebem o grupo como um sistema composto de tudo que existe e já existiu — os ancestrais possuem lugar de proeminência (Leite) e constituem um princípio organizador e preservador do grupo (Sodré) — quanto reelaborar um evento de despossessão comum (Brand).
Qualquer conceito de justiça que nasça destas experiências tem responsabilidade com os que já existiram e os que estão porvir (Derrida Espectros). Desta forma, a noção derridiana de justiça com e pelos espectros ganha outro fôlego quando refletida nas experiências das mulheres de terreiro. Após localizar a justiça nos limites do impossível, Derrida a complexifica ao entendê-la como exercício infindável de memória e de dívida para com os espectros.
De fato, quando Derrida escreveu sobre espectros, ele tinha em mente o encargo de Hamlet, a personagem de William Shakespeare no “caso mais célebre de autobiografia coletiva ou a sessão de análise mais duradoura do Ocidente” (Beber 5). Pensava também sobre o fantasma de Marx no pensamento social e na realidade pós-queda do muro, ele mesmo morto tantas vezes, e declarado morto mais ainda. Entretanto, chamar os espectros para a conversa, especialmente para a conversa da justiça, tem o potencial de mostrar que o que não existe mais e o que ainda não existiu (este reino particular da justiça) também fazem parte do que acontece agora.
Rafael Haddock-Lobo ao fazer conversar os espectros derridianos com a episteme das religiões afro-brasileiras, explica que a aparição espectral é sempre política e traz irremediavelmente uma tarefa. Além disso, os espectros são multiplicidades, jamais uma coisa só, cuja aparição traz consigo uma “disjunção espaço-temporal” (56). A interrupção da pretensa linearidade temporal desencadeada pelo espectro se aproxima da temporalidade clivada e espiralar que Leda Maria Martins atribui à ancestralidade. Ao elaborar sobre as epistemes negras, esta autora as concebe sempre em movimento e como um conceito mesmo de tempo, um tempo que gira, espiralar, em que a diferença sempre retorna7. São africanias e repertórios que se repetem, que se improvisam colocando em prática a força motriz que é a ancestralidade. Não é um acaso, portanto, a explicação que Ebome Vanda traz da iniciação como a Mãe que retorna.
A experiência da iniciação narrada por Ebome Vanda coloca em perspectiva a disjunção do tempo e a corporificação da ancestralidade. Iniciação é um termo importado ou contaminado do jargão antropológico, como Ebome Vanda explica, ao preferir o termo feitura em seu livro Pele da Cor da Noite. Feitura é um termo mais fluente e impregnado nas vivências do candomblé e que descreve melhor o que acontece nas múltiplas etapas em que se “faz o santo”. Ao narrar sua feitura, Ebome Vanda comunica sobre um outro tempo experimentado e afirma que este processo complexo é um dos maiores legados transmitidos pelas ancestrais que aqui plantaram suas forças, suas energias, seu axé. É impossível, não ler o relato acima e não pensar na noção de tecnologias ancestrais de produção de infinitos8 esculpida por Cidinha da Silva. Nas vozes de suas personagens encontramos a menção a estas formas de viver, de fazer, de sobreviver e encantar que foram “herdadas dos que vieram antes de nós e nos trouxeram até aqui” (14-5).
Há um risco de se conceber os espectros como presenças transcendentais, distantes da materialidade. Entretanto, espectros consistem em uma “espécie de virtual que não se dissocia da materialidade” (Pinto Neto 124). Dessa forma, quando Ebome Vanda narra sobre a paisagem e a multidão de mulheres que cantavam ou que estavam ali pois foram as que ensinaram as viventes a cantar, ao se sentir terra, é uma demonstração da dimensão material da ancestralidade. Diferente, entretanto, de uma noção de ancestralidade genealógica que quer buscar uma origem no conhecido (Brand), na resposta modernocientífica dos genes e do logos, a uma ressignificação moderna do espectro mais inabalável do Ocidente: a família patriarcal. A África na definição mesma de ancestral, não no passado, pois existe, não na transcendência, é matéria:
Meu avô me deixou nessa expectativa e curiosidade, portanto. Pois o nome que ele não podia lembrar era o nome de um lugar do qual nós não podíamos lembrar. África. Era o lugar do qual não lembramos, ainda que ele se alocasse em todas as conversas sobre quem éramos. Era um segredo visível (Brand 31).
O mesmo ocorre com a presença espectral do barco na narrativa de Ebome Vanda. A saída mais simples seria pensar que o barco é inspiração para a iniciação, é uma metáfora, uma rememoração do que foi. Mas não. O barco não é metáfora, é substância. Quando feitas elas se tornam barco, elas são o barco. Um barco de oito mulheres, e um menino que nasce dentre elas. O barco é matéria. Compreender que ancestralidade é materialidade consiste em demanda por responsabilidade que a justiça convoca.
3. Lívia Natália e uma episteme de Oxum
Lívia Natália é uma poeta baiana, ialorixá e professora universitária. É de Oxum, e esta é a ontologia de sua arte. Entende sua criação enquanto uma literatura adoxada, de encantamento, e não uma literatura fantástica. Adoxu é um dos fundamentos que levamos à cabeça durante a feitura, “a consagração do Ori para que ele se torne o fidedigno canal de comunicação entre o iniciado e seu orixá” (Souza 198). A poeta explica como ser de Oxum, e especialmente da qualidade de Oxum a que pertence, é o que torna possível sua escrita:
Quando fui consagrada a esse Orixá, vinha com o senso comum de Osun como sendo a deusa da beleza, do amor, do ouro e da delicadeza. Mas, para meu espanto, a minha Mãe é uma Osun velha, poderosa feiticeira que se acompanha dos Ègúns, seres desencarnados, a quem ensinou a dançar. E, mais ainda, dentre as dezesseis qualidades trabalhadas no Ketu da Bahia, ela é tão única, rara e respeitada que não se pode pronunciar o nome dessa Senhora (Souza 196).
Oxum figura aqui, explicitamente, como fundamento epistemológico. E não qualquer um. Ser de uma Oxum “que se acompanha dos Èguns” é enfrentar a limitação colonial à imagem da orixá. Além disso, Lívia Natália oferece uma escrita “sob o signo de cantar Èguns”, quando sua poesia também se encanta da denúncia e do sentimento contra a violência racial, a exemplo de poemas em que se insurge à violência policial:
Quadrilha
Maria não amava João,
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
Assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos (Souza 137)
A autora escreveu o poema acima sob o impacto da Chacina do Cabula, ocorrida em Salvador em 2015, quando 12 jovens foram assassinados pela Polícia Militar do Estado da Bahia (Souza 137). Esse evento teve direito a comentários desprovidos de repúdio moral por parte do Estado, ao melhor exemplo da denúncia filosófica de Denise Ferreira da Silva, a respeito da convivência pacífica entre a violência racial e Estado de Direito.
A presença epistemológica de Oxum na obra da autora é múltipla, a maior parte de suas obras publicadas se devotam à água, já no título: “Água Negra”; “Água Negra e outras Águas”; “Correntezas e outros estudos marinhos”; “Sobejos do Mar”, e; “Dia bonito para chover”. É com este ânimo, que Lívia Natália ensina sobre a noção de poesia que informa a presente tese, poesia enquanto justiça epistêmica:
Diante disso, cabe perguntar: O que pode um poema? O que pode a literatura ante quadro tão violento de desrespeito aos direitos humanos? Um poema pode recolher sujeitos do esquecimento, um poema pode lavar e vestir mortos desimportantes, um poema pode chorar por eles e lhes avisar da importância de sua vida, mais que da sua morte, um poema pode nos devolver a humanidade negada, um poema pode ser afeto na face fria e na sobrevivente, um poema pode ser episteme, pode ser forma de inscrição, recalcar silêncios brancos. Um poema pode pôr os Eguns para dançar, um poema pode ser uma forma de dizer que, mesmo contritos em silêncio [...] (Souza 203).
A poesia é uma forma de conhecimento, mas não qualquer conhecimento. Um conhecimento que faz o pensamento fazer uma curva, produzindo outros imaginários.
4. Fausta/Obatalá
Proponho rasurarmos, fazermos anotação (Sharpe 2023), num capítulo de Nina Rodrigues em Animismo Fetichista dos Negros Baianos, Seção III “Feitiço, Vaticínio; Estado de Possessão, Oráculos Fetichistas”. Escrito na última década do século XIX, nesta parte do livro vamos ter com Fausta, mulher negra de candomblé ainda não iniciada, a quem o médico maranhense paga para realizar testes sobre possessão no candomblé. O objetivo consistia em saber, dentre outras questões, se era possível considerar tal estado como uma das manifestações de histeria9.
Nina Rodrigues (1862-1906) foi um intelectual radicado na Bahia, considerado precursor dos estudos raciais no Brasil, medicina legal e criminologia. Atuou em debates e implementação de reformas de saúde pública e do novo Código Criminal em finais do século XIX e início do século XX. Circulou, juntamente com alguns de seus textos, pela Europa. Residiu na França, foi lido por nomes da envergadura de Marcel Mauss, por exemplo, e foi considerado digno representante tropical do criminólogo italiano Cesare Lombroso (Romo 38).
É com muita cautela que se tenta adentrar a complexidade da obra de Nina Rodrigues. Certamente partilhou do determinismo biológico e foi doutrinador do racismo científico. De outro lado, em seus debates de raça também deu ênfase ao ambiente e à cultura e negou saídas apontadas por seus contemporâneos ao problema racial, como o recrutamento de imigrantes europeus (Romo). Há entre os estudiosos de sua obra quem recorde que foi um defensor da empiria, etnógrafo voraz das práticas religiosas que acompanhava, levando a palavra de seus interlocutores a sério (Maggie e Fry 10-11). À perseguição policial de candomblés argumentou com a garantia constitucional da liberdade religiosa. Foi levantado ogã no Gantois, daquele tipo de ogãs cuja destinação no terreiro é o agenciamento com a política de fora, usando de seu prestígio para a defesa da comunidade (Braga 48).
A questão aqui não é esgotar a análise de um autor, de cuja redoma, ouso dizer, os estudos das religiões afro-brasileiras jamais conseguiram se libertar. Seja pelo ranqueamento racial que inaugurou entre as culturas africanas das mais às menos “degenerados” que contamina o campo interno das religiões afro-brasileiras e dos estudos destas até hoje, seja por seus registros pioneiros ou pela reivindicação de sua obra para batizar uma escola baiana de estudos raciais na década de 1930 (Corrêa), Nina Rodrigues é espectro que assombra textos. A presente tese não conseguiria discutir profunda e criticamente a contribuição do médico maranhense. Neste sentido, há análises minuciosas sobre a repercussão de sua obra e constituição da Escola Nina Rodrigues (Corrêa) e do acionamento de raça e gênero em sua criminologia positivista (Franklin “Raça, gênero e criminologia”).
Entre pesquisar o crânio de Antônio Conselheiro e outros criminalizados famosos, Nina Rodrigues andava em candomblés. Ali, em sua relação com as mulheres de terreiro, nota-se o lugar que reservava à interseção entre gênero e raça em suas análises. Segundo Naila Franklin, elas foram retratadas ora como “feiticeiras”, portanto criminosas que lesavam a vida de outras pessoas, ora enquanto “incautas” que não possuíam racionalidade ou discernimento (Franklin “Entre a incauta” e “Raça, gênero e criminologia”).
Mas é Fausta que precisamos conhecer. No capítulo analisado, a primeira aparição de Fausta/Obatalá é quando o santo se manifesta “bruto”, ou reivindicando análise poética feminista negra, em estado bruto (Ferreira da Silva A Dívida Impagável):
A observação que se segue, curiosa e concludente, constitui, me parece, uma demonstração experimental de que, como vou sustentando, o estado de santo não é mais do que um simples estado sonambúlico provocado. Um dia, não há muitos meses, assistia eu a um candomblé, próximo da porta que dava para a sala onde dançava uma rapariga em estado de santo. Notei que uma mulher negra, moça ainda, que se achava ao meu lado, seguia a dança com a maior atenção. Perguntei-lhe se também tinha santo e qual ele era. Respondeu-me que tinha santo, mas ainda não o tinha podido fazer por falta de recursos para a festa da iniciação, que ela estava, porém, se preparando, e me pedia que a auxiliasse com uma esmola. Momentos depois, de súbito lança-se ela na sala e põe-se a dançar com uma expressão tal que não tive a mínima dúvida de que não se achava em estado normal. Interpelei a respeito a mãe de terreiro. E esta me explicou que não são raros os casos, como o daquela rapariga, em que mesmo antes da iniciação o santo já se revela. É o que se chama um santo bruto, ainda não feito. Nestes casos têm-se as manifestações como um castigo, uma perseguição do santo para que a pessoa o mande logo fazer (Rodrigues 77).
Aqui, se nos ativermos apenas as palavras trazidas pelo médico, agora no lugar de pesquisador, observamos sua curiosidade inquisidora (Ginzburg) e a explicação êmica da mãe de santo sobre a ontologia bruta de um “santo” não iniciado. O que seria um santo bruto? Uma performance que interrompe qualquer cena? A cena da pesquisa? O andamento ritual de uma atividade pública de candomblé?
A observação do santo bruto de Fausta, seguida da permissão para que Rodrigues acompanhasse a interrupção do transe bruto por outras mulheres de terreiro que acompanhavam o enredo, despertam em Nina Rodrigues uma oportunidade de contrato de pesquisa:
Após uma dança extremamente longa e fatigante caiu a rapariga em letargia e, conduzida pelas companheiras, foi deitada numa esteira no santuário, onde eu então me achava com a mãe de terreiro. Perguntei a esta que tempo a rapariga dormiria naquele estado, respondeu-me que poderia dormir muitas horas ou logo ser despertada, o que ela anuiu fazer para que eu assistisse. Para isso encheu a boca de água de santo, tomada a um pote que se achava junto ao altar e lançou-a sobre a face da rapariga que dormia coberta de suor copiosíssimo. A rapariga despertou em sobressalto e levantou-se atordoada, muito surpreendida de estar ensopada por aquela forma. Deixei-a afastar-se da mãe de terreiro e das outras companheiras, e quer nesse dia quando fui ter com ela, quer por diversas vezes nas subsequentes, sempre que a interroguei com o maior cuidado, encontrei uma lacuna na sua memória que ia quase do momento em que se lançara na dança até aquele em que despertou molhada. Quando eu lhe dizia que havia sido testemunha de tudo, que tinha visto a mãe de terreiro despertá-la com a projeção da água no rosto, ela me declarava sempre, no tom da mais viva sinceridade, que absolutamente não se lembrava de nada ainda. E, presa como a tinha pela promessa de auxiliá-la a fazer o seu santo, teria obtido a confissão da verdade, como obtive dela outros esclarecimentos importantes que me tiraram toda a dúvida sobre a boa fé. Via-a, depois, cair em estado de santo por mais de uma vez, e com demonstrações indiscutíveis de completa transformação (Rodrigues 77-8).
O santo em estado bruto de Fausta não diz respeito apenas ao orixá não lapidado pelo devir iniciático. Ele posiciona Fausta diante do texto científico, em sua estratégia de intervenção científica, localizando-a na exterioridade, na afetabilidade (Ferreira da Silva Toward). Fausta é construída como um objeto de pesquisa, porque é afetável, diferente da consciência do sujeito transparente (por exemplo, um homem que pode intervir em um corpo feminino negro) cuja essência é a autodeterminação (Ferreira da Silva Toward). Mais adiante, Nina Rodrigues detalha suas estratégias de pesquisa/intervenção:
Tempos depois encontrei-a um dia nesta cidade. E apesar de relutância que sempre tinha manifestado, consegui induzi-la a se deixar hipnotizar. Tendo comparecido ao consultório, mostrou-se de extrema sensibilidade ao primeiro ensaio de hipnotização empregado. O estado sonambúlico completo era facilmente provocado pelas injunções sugestivas. Estando só no consultório, receei tentar nesse dia qualquer experiência sobre o estado de possessão de santo. Ordenei-lhe que comparecesse no dia seguinte em que contava com a presença e o auxílio de outros colegas. O meu distinto colega e amigo Sr. Dr. Alfredo Britto, professor da Faculdade, fez-me a fineza de se prestar a ver a mulher. E em sua presença, tendo-a previamente hipnotizado, sugeri-lhe que ela se achava no terreiro onde eu a tinha visto de santo. Começou logo a ver a casa, os objeto e as pessoas que lá se achavam naquela ocasião. Conhecendo, como eu conhecia, a ordem em que naquele candomblé se sucediam as músicas e os cânticos sagrados, e sabendo que a do seu santo Oubatalá vinha em quarto lugar, sugeri-lhe então a alucinação dessas músicas a começar da de Esú. Ela me ia advertindo da sucessão dos diversos cânticos e quando devia seguir-se o de Oubatalá afirmei-lhe com energia que ela ia cair de santo. De repente pôs-se a fazer oscilar lentamente o tronco e a emitir um prolongado pschio... Chamei-o pelo nome, Fausta, e perguntei-lhe o que tinha. Respondeume que não era Fausta e sim Oubatalá, que Fausta era apenas o cavalo de Oubatalá. O estado em que se achava, o modo de falar eram tudo a cópia fiel do estado de santo da mãe de terreiro onde eu a tinha conhecido. Quis, porém, obrigá-la a dançar, ao que ela se opôs, ora alegando que não estava com as vestimentas próprias ora que a música de Oubatalá já tinha cessado e a ela se tinha seguido a de outro santo, ora finalmente que estávamos em tempo de quaresma e nesse tempo não pode mais haver dança de santo. Insisti, procurando sugerir-lhe que se achava com as vestes de Oubatalá, tentei provocar-lhe de novo a alucinação da música desse santo, mas ela que até então se tinha mostrado passivamente obediente às minhas sugestões, recusou-se a aceitá-las. Sempre a insistir para que deixasse ir embora, Oubatalá deu-me ainda explicações sobre a mitologia de Jorubá, as suas relações com o culto católico, de acordo com as ideias acanhadas de Fausta, que eu já conhecia bem. Por fim perguntei-lhe o que era preciso fazer para que ele se pudesse ir embora, respondeu-me que dar um pouco d’água ao seu cavalo. Desde que bebeu um copo com água, Fausta despertou no estado de atordoamento e confusão em que eu tinha visto já por muitas vezes ao sair do estado de santo. Este estado de atordoamento é mais ou menos duradouro. Muitas horas depois, Fausta estava ainda tão atordoada que perdeu o dinheiro que eu lhe havia dado para a sua festa de iniciação (Rodrigues 78-80).
Estamos diante de intervenção científica e sônica. A racialização produziu a afetabilidade de corpos negros também pela música, barulho, ruídos (Robbins). A sonoridade (batucagés, cantos, sons incompreensíveis etc.) oriunda de espaços marcados pela africanidade estudados pelo autor são dimensões estruturantes de racialização na obra de Nina Rodrigues (Robbins 73). Na interação descrita acima, a estimulação sonora de Fausta é mais um dos esforços do autor em construir “uma tipologia de mentes, consciências afetáveis, radicalmente distintas do sujeito de regulação (auto – e interna), que a noção de “livre arbítrio” pressupõe” (“Speculation” 226). Algum defensor contemporâneo da suposta acuidade etnográfica de Nina Rodrigues poderia, ainda, apontar que ele seria “mulato”. Mas o seu lugar na cena da regulação científica, enquanto médico, pesquisador-proprietário que tem recursos para pagamento, efetua a transação final da racialização. Nina Rodrigues pode ingressar na condição de sujeito transparente. Fausta não.
A performance negra do transe bruto de Fausta era textualidade oriunda de outra episteme, porque evocava um saber filosófico e uma cosmovisão em seu corpo, seus gestos, movimentos e sons. Leda Maria Martins identifica nas performances negras o que chamou de oralitura, o entrelaçamento complexo de saberes corporificados nos quais se movimenta a memória e os desenhos das cosmovisões que o habitam, rasurando a distinção entre oralidade e escrita. Performances corporais como o transe de Fausta devém uma episteme afro-corporificada:
No âmbito da oralitura gravitam não apenas os rituais, mas uma variedade imensa de formulações e convenções que instalam, fixam, revisam e se disseminam por inúmeros meios de cognição de natureza performática, grafando, pelo corpo imantado por sonoridades, vocalidades, gestos, coreografias, adereços, desenhos e grafites, traços e cores, saberes e sabores, valores de várias ordens e magnitudes, o logos e as gnoses afroinspirados, assim como diversas possibilidades de rasura dos protocolos e sistemas de fixação excludentes e discricionários.(...) No contexto do pensamento que trança as diversas e diferentes culturas africanas com as culturas da diáspora, movimentos de retroação e de avanços simultâneos só podem ser mensurados e arguidos no âmbito mesmo de uma visão de mundo, de uma concepção da vivência do tempo e das temporalidades, fundadas por um pensamento matriz, o da ancestralidade, princípio mater que inter-relaciona tudo o que no cosmos existe, transmissor da energia vital que garante a existência ao mesmo tempo comum e diferenciada de todos os seres e de tudo no cosmos, extensão das temporalidades curvilíneas, regente da consecução das práticas culturais, habitadas por um tempo não partido e não comensurado pelo modelo ocidental da evolução linear e progressiva (Martins 41-2).
No capítulo em análise, é marcante que o autor compare o estado de possessão de Fausta com um caso de uma jovem mulher branca acometida de histeria. Para lidar com o caso da mulher branca, o especialista convocado foi um “feiticeiro malê”. Apenas em momento posterior, um médico, propriamente Nina, interveio e conseguiu o resultado almejado, que consistiu no retorno da mulher branca à normalidade doméstica do gênero (Rodrigues 83). Já Fausta não teve o mesmo desfecho porque se recusou a encontrar novamente o antropólogo-inquisidor-médico, bem como outros iniciados também se negaram ativamente em participar das pesquisas do médico. No que diz respeito à comparação dos casos e a recusa dos candomblecistas:
Assim, ao passo que aqui a simples sugestão verbal foi suficiente para dar cabo imediato de um estado de possessão, em Fausta na segunda fase do sonambulismo as minhas sugestões nada conseguiram, sendo necessário recorrer a um ato particular a ingestão d’água - para terminá-lo, como tinha sido necessário um ato especial para provocá-lo – a alucinação da música sacra. Por enquanto não me tem sido permitido levar mais longe os meus estudos. A própria Fausta não voltou ainda a esta cidade como se tinha comprometido, para completar o seu exame sob o ponto de vista dos estigmas histéricos. Tenho procurado submeter a uma experiência análoga outros iniciados, mas em geral recusam-se formalmente a qualquer tentativa de exame em matéria de possessão, ou de estado de santo. Assim, ignoro de todo se essas manifestações reduzem-se ao que tenho observado, ou se ao contrário existem ainda nelas fenômenos mais complexos da natureza do faquirismo indiano, ou de certos fenômenos espíritas, de maior relevância, que aliás nunca tive ocasião de observar. Até hoje o que pude ver é o que vai exposto fielmente (Rodrigues 83).
É na insubmissão de Fausta (Evaristo) que sugiro nos determos. Não, não é possível conhecer Fausta e reduzir sua existência a esta experiência de violência. Imaginemos o que Fausta e as outras mulheres de terreiro, que se recusaram a participar das pesquisas sobre o transe, nos anteciparam. No romance Amada, a escritora negra estadunidense Toni Morrison (2007) reimaginou a vida de Margareth Garner, uma mulher negra liberta que lutava contra a reescravização no século XIX e preferia matar seus filhos a permitir que conhecessem a escravidão. Cabe recordar os motivos que levam a personagem inspirada em Garner, Sethe, a fugir da fazenda onde se encontrava com sua família. Sethe observa o “Professor”, o novo proprietário, medir o crânio de pessoas escravizadas. A isso, somou-se a profanação obscena da maternidade da personagem Sethe, que não reproduzo aqui. Mas Toni Morrison escreveu o quanto era violento para as pessoas negras terem seus corpos invadidos, medidos, estimulados em intervenção científica pela analítica da racialidade (Ferreira da Silva Toward). A recusa de Fausta deve ser lida como uma enunciação de justiça epistêmica.
Escrevi, em outro momento deste texto que a (in)justiça epistêmica não diz respeito apenas a existência de saberes assujeitados, não testemunháveis, não acreditados, ou na luta empreendida historicamente pelas mulheres de axé e povos de terreiro para que o Estado-Nação compreenda e incorpore os seus léxicos. Apesar desta não ser uma tarefa pequena ou simples, não se restringe a ela. A justiça também está no insondável, impronunciável, no insubmisso, no que está a ser anunciado (Ferreira da Silva A Dívida Impagável). Nina Rodrigues não conseguiu submeter ou compreender o sagrado no corpo de Fausta. Estamos diante de um exemplo radical de desobediência epistêmica. Nina Rodrigues não tinha axé para recrutar transe e invocar Obatalá.
Assim como Sethe, Fausta se recusou a ser objeto (Moten). A locução dos gritos de dor de Tia Hester durante um espancamento narrada na biografia do liberto estadunidense Frederick Douglass suscitou debates sobre justiça, imagens de violência e recusa à objetificação que pode ser útil aqui. Em Scenes of Subjection, Saidiya Hartman inicia o livro com a explicação de por que não iria reproduzir em suas páginas as cenas de violência infringidas à Tia Hester narradas por seu sobrinho Frederick Douglass. Para a autora, repetir essas palavras nos dias e textos atuais não cumprem o papel de denúncia da violência, mas a ambígua posição de repetir, espetacularizar e naturalizar as cenas de sujeição10.
Já Fred Moten, em Na Quebra, dialoga com a importância da crítica de Hartman à reprodução voyeurística de cenas de sujeição, mas insiste que há uma outra escrita que os gritos de Tia Hester produz, a performance de vocalidade de sua resistência: “a emergência da materialidade e da sintaxe radicais que animam performances pretas, a partir da objeção política, econômica e sexual, indica uma pulsão de liberdade que é expressa, sempre em toda parte, por meio de sua (re)produção gráfica” (Moten 33). Moten reflete como os gritos na cena de sujeição ou mesmo a música negra trapaceiam o projeto linguístico do Iluminismo, produzindo uma crítica às noções de valor e matéria. Formas de resistência que não estão limitadas a fonemas e palavras. Fred Moten escreve “A resistência do objeto: O grito de Tia Hester”. Podemos anotar: “A resistência do objeto: a recusa de Fausta”.
A cena narrada posiciona Fausta na cena do reconhecimento e permite “explorar o corpo feminino enquanto referente de desejos não reguláveis e não representáveis” (Ferreira da Silva A Dívida Impagável 62). No momento da transparência, o corpo da nativa escravizada é um Excesso, e é a partir desta realização que se entra nos limites da Justiça, como algo ainda a ser anunciado, um referente de força e violência (A Dívida Impagável).
Ainda seguindo em detalhe o texto científico de Nina Rodrigues, a presença e nomeação de Fausta levanta outras questões. A forma como Nina Rodrigues lidava com as mulheres de terreiro não partilhava da mesma concepção de humanidade, disso decorre que nunca saberemos se Fausta era verdadeiramente o nome da filha de Obatalá, santo bruto. Era do mesmo século XIX o longo poema Fausto do escritor alemão Goethe. Dos seus milhares de versos, a obra ficou conhecida pelo mito em torno da personagem principal, o Doutor Fausto, que em busca de conhecer todas as coisas realiza um pacto com o diabo, representado na personagem Mefistófeles. O longo poema revela mais complexidades, mas a personagem Fausto ficou conhecida por tal tratativa, o “pacto fáustico” (Heize).
Um século depois de lutas políticas e enfrentamento ao racismo presente nos estudos afro-brasileiros, a suposta nomeação de Fausta por Nina Rodrigues oferece uma ironia sobre quem seria a personagem Mefistófeles com quem ela teria pactuado. Certamente não era Obatalá. Ele, insubmisso. Incontratável.
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QUOTE AS:
Ana Laura Silva Vilela. Mulheres de Axé, Justiça e Outra Coisa. The Living Commons Collective Magazine. N.3, September 2025. p.
1 As vidas de Ebomi Vanda Machado e Mãe Jaciara Ribeiro, duas mulheres negras de axé de Salvador-Bahia, filhas da orixá Oxum, conduzem os caminhos desta tese. Há décadas, Ebomi Vanda Machado elabora propostas de educação a partir dos terreiros, como lócus do pensamento africano recriado na Diáspora e se mobiliza em redes de encontro e afetos das comunidades de terreiro. A ialorixá Mãe Jaciara Ribeiro constituiu sua trajetória política e religiosa a partir da luta nacional para a reparação da violência religiosa contra sua mãe biológica, Mãe Gilda, e mantém de pé o legado da mãe.
2 Trata-se de um baralho de tarot que reinterpreta os arcanos maiores e menores a partir de personalidades e conceitos da filosofia ocidental, predominantemente. Foi publicado pela editora londrina Repeater Books em 2022, o autor creditado é Se- reptie/Craig Laubach. O manual que acompanha as cartas traz a seguinte apresentação, que traduzo: “Um aprendizado em filosofia/O Tarô do Filósofo é um mashup emocionante do método de adivinhação mais renomado do mundo com uma série de filósofos eminentes, famosos intelectuais e figuras revolucionárias. Aprenda a amar com Friedrich Nietzsche ou pondere o significado de “comunismo ácido”! Com vibração adicional, o deck compreende uma releitura das 78 cartas originais de Rider Waite apresentando alguns dos teóricos mais provocativos da história e conceitos intrigantes. O Tarô do Filósofo é seu para invocar perguntas estimulantes sobre a natureza da realidade, as maquinações do nosso mundo, e os limites da mente e do corpo. O Tarô do Filósofo inclui interpretações novas para as 78 cartas originais do tarô Rider- Waite e um manual do aprendiz que apresenta as ideias e temas mostrados no deck”.
3 “222. O que acontece quando pensamos a modernidade, com suas fronteiras e infra-estruturas onto-epistemológicas, como um projeto de constrição telepática?” (Mombaça e Matiuzzi 17).
4 A autora utiliza a expressão negridade para diferenciá-la da categoria négritude a qual está conectada ao movimento literário empreendido a partir dos anos 1930 por autores como Leon Damas, Leopold Senghor e Aimé Césaire.
5 “Como tal, ela é um referente ao que não tem determinação, ao que não tem o programa kantiano; não porque ela foi ex- cluída, mas porque seu valor não significa negação, mas nada – ela está sem a norma patriarcal e sua atribuição de valor (+ ou -) (Ferreira da Silva “Hackeando” 211).
6 “Vamos camaradas, vamos, é melhor que mudemos de procedimento desde já. A grande noite em que estivemos mergu- lhados, cumpre que a abalemos e nos livremos dela. O dia novo que já desponta deve encontrar-nos firmes, avisados e reso- lutos. É preciso que renunciemos a nossos sonhos, abandonemos nossas velhas crenças e nossas amizades anteriores à vida. Não percamos tempo como litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por tôda a parte onde o encontra, em tôdas as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo” (Fanon 271). Para ouvir este célebre e frutificado texto na voz da impressionante Lauryn Hill ver: CON- CERNING Violence: Nine Scenes of of Anti-Imperialistic Self-Defense. Direção de Göran Olsson. Produção de Tobias Janson, Annika Rogell. Suécia: Final Cut for Real Helsinki Filmi Oy, 2014. (89 min.), son., color. Legendado. Co-produção entre Finlândia, Dinamarca, Estados Unidos.
7 “De que modos, então, essa sofisticada vivência da ancestralidade e a presença imanente do ancestre na vida cotidiana dos sujeitos também inscrevem uma singular compreensão e experiência da temporalidade, como uma sophya?” (Martins 23)
8 Trago aqui dois trechos de crônicas em que as personagens acionam estas tecnologias, e nos dão a entender um pouco do que se tratam e quando são vivenciadas. Aqui uma personagem reflete no contexto da pandemia de Covid-19: Despachava aruá todas as vezes que saia de casa, comunicava a Iku que não iria ainda, que ele desistisse de mim porque ainda tenho muita coisa a fazer por aqui. Conversava com Iku já que não existia conversa com os que querem nos matar, com os que nos consideram vidas descartáveis. Fazia acordos com os donos das encruzilhadas e das ruas diante dos olhos assustados dos porteiros evangélicos, da surpresa dos coreanos, donos do mercadinho, e do escárnio do taxista racista. Dava ciência a Exu sobre meu desejo de viver e a incumbia de levar a mensagem a quem de direito; a Ogum prestava reverência, declarava e demonstrava domínio sobre a situação de guerra que nos sufocava (não conseguíamos respirar); na presença dele me motivava a lançar mãos das tecnologias ancestrais de sobrevivência e produção de infinitos, herdadas dos que vieram antes de nós e nos trouxeram até aqui” (Silva 14-15). A categoria também aparece na voz de uma personagem mãe conversando com a filha sobre um livro escrito por uma autora negra: “Você fala com tanto vigor e beleza sobre esse livro filha, quero ler. A sua leitura me faz pensar que ele oferece um tipo de ancoragem às forças que nos permitiram sobreviver ao morticínio físico e espiritual imposto pelo tráfico atlântico, pela escravidão e seus ardis, pelo racismo. Aquilo que nos permitiu manter e acessar tecnologias ancestrais de produção de infinitos, principalmente nos momentos de maior desespero, e nos permitiu chegar até aqui” (Silva 81).
9 O debate sobre a possibilidade de histeria em mulheres negras se localizava em debate mais amplo e cheio de tensiona- mentos na literatura médica sobre suposta epidemia de “abasia coreiforme” após eventos ocorridos em Itapagipe no município de Salvador e outras cidades brasileiras, em que multidões eram descritas com os seguintes sintomas “maleatória, saltatória, vibratória, rotatória, procursiva, e nega qualquer influência etiológica a intoxicação ou infecções possíveis” (Rodrigues 149). À época foi instituída uma comissão de médicos para produzir um relatório para o Imperador sobre os ocorridos. Nina Rodrigues não participou da comissão, mas se debruçou sobre a questão ao argumentar “cientificamente” que a epidemia possuía acio- namentos religiosos e sonoros na consciência (Robbins 82).
10 “Optei por não reproduzir o relato de Douglass sobre o espancamento de tia Hester para chamar a atenção para a faci- lidade com que tais cenas são geralmente reiteradas, a casualidade com que circulam e as consequências desta exibição rotineira do corpo devastado da escrava. Em vez de incitarem a indignação, muitas vezes eles nos habituam à dor em virtude da sua familiaridade – o carácter frequentemente repetido ou restaurado destes relatos e a nossa distância deles são assi- nalados pela linguagem teatral normalmente utilizada na descrição destes casos – e especialmente porque eles reforçam o caráter espetacular do sofrimento negro. O que me interessa são as formas como somos chamados a participar em tais cenas. Seremos nós testemunhas que confirmam a verdade do que aconteceu face às capacidades destruidoras do mundo da dor, às distorções da tortura, à absoluta irrepresentabilidade do terror e à repressão dos relatos dominantes? Ou somos voyeurs fascinados e repelidos por exibições de terror e sofrimento? O que resulta a exposição do corpo violado?” (Hartman 1).