Interrupções inconsistentes: o tempo, a pose e um pouco de natureza

by

nayla ramalho (text)

maurício chades (photography)


 
 

Interrupção. Estamos hospedados em Copacabana. Dormir nessa região da cidade do Rio de Janeiro implica aceitar a interrupção. Ora por um chorinho que toca no bar da calçada, ora pelo choro da criança que a mãe tenta colocar para dormir com ela no chão da calçada. Interrupção pela buzina, o som de rojão, o gol do Flamengo. Interrupção que se desdobra na dualidade contraditória da praia à noite iluminada que afeta - ou impossibilita – a vida de animais nativos das areias: tartarugas, caranguejos – onde estão eles? 

Ainda em Copacabana, dualidade entre trânsito intenso de carros e a quietude do morro de pedra, que aos poucos se quebra e ganha curativos de concreto. Seguimos para o Parque Lage, local da nossa residência artística. Ali também dualidade. Lugar repleto de turistas que talvez façam a visita atraídos pelo contraste entre urbano e natureza. Não se pode saber quais os motivos os trazem ali, mas é possível observar que a imagem é parte importante na construção do itinerário já que é comum longas paradas e poses para capturar a melhor fotografia que enquadra a piscina, o casarão antigo, o morro, a floresta nativa e no alto, o Cristo Redentor.

 
 

Imagem exigente que precisa de um posicionamento exato do corpo, encontrado após dezenas de tentativas. Uma posicionalidade que é encontro entre lugar do fotógrafo e do fotografado, entre corpo humano em pose e casarão antigo. Aos fins de semana, chega-se a esperar na fila por volta de meia hora, pacientemente, em local em que as pessoas se auto-organizam, em uma espécie de herança natural da necessidade de uma certa foto específica que precisa se repetir. Como se o lugar tivesse uma marca que exige um compromisso, que exige uma certa interação. De onde vem essa necessidade? Quem ou o que determinou que ali, com a piscina e com os arcos do casarão antigo ao fundo, seria firmada essa quase obrigação ao visitar o Parque Lage, de se produzir uma interação imagética determinada entre corpo humano e espaço? Essa fila, esse gesto de demora de corpos, as fotos que se repetem até que a imagem suficiente seja alcançada, seria algo como um modo de habitar o espaço que interrompe outros desenhos cotidianos, como o do tempo do trabalho remunerado. Seria também algo como uma ritualização repetitiva de um significado que se perdeu ou que nunca houve? Uma busca por uma herança, uma maneira de apropriar-se do espaço e de capturar, pela imagem, mesmo que de maneira fugaz, uma possibilidade de viver naquele lugar. O que seria o turismo senão habitar, por alguns instantes ou horas, um lugar que difere do lar, ao se imaginar outras possibilidades de pertencer, mesmo que impossíveis? Outras paisagens, texturas, cheiros?

 
 

Mas por que esse lugar específico ser o lugar que exige uma certa foto muito específica que se repete ao ser registrada por quem passa por ali? Há outros lugares que pedem uma imagem específica dessa forma? E no que os habitantes-turistas se diferem dos outros habitantes, como os trabalhadores dos jardins? Esses trabalhadores fazem as podas dos galhos das árvores que oferecem risco de queda e a retirada das plantas que não são parte do projeto paisagístico do parque além de também serem responsáveis pelo replantio das mudas recentemente plantadas e arrancadas pelos macacos. Recolhem o material orgânico fruto desses trabalhos e depositam-no em grandes caçambas. Os trabalhadores dos jardins experienciam os cheiros, as cores e a temperatura do parque diariamente, acompanham o crescimento das plantas, a mudança pequena, o dia-a-dia. 

Trabalhar os jardins do Parque Lage é construir um ambiente que acolhe os habitantes de passagem e pacifica a terra e as plantas e ainda indica que ali é um lugar seguro para caminhadas ao ar livre, brincadeiras das crianças, piqueniques. Estar de passagem, assim, é caminhar sobre caminhos de cuidado repetitivo, insistente.

Retratar os caminhos de cuidado pode ser fazer imagem do que transborda da tarefa, do trabalho, da função. Pode ser também o que envolve a função, mas que se registra em uma duração que insiste em cada gesto, em cada pequena alteração no espaço e no corpo. Cada uma dessas pequenas alterações são o ambiente em manutenção, essa atividade que visa manter uma imutabilidade impossível, um esforço de adiamento. Cuidado repetitivo e adiamento, duas ações que suspendem uma interação/alteração mais significativa ou até mesmo violenta entre plantas, terra, humanos, animais e edificação histórica. A ação do tempo sobre um casarão antigo como o do Parque Lage envolve uma ação material: a ação dos musgos que crescem nas rachaduras, por entre a textura porosa do cimento, a ação da chuva, da humidade, que marca caminhos escuros bem definidos nas paredes, que as corrói, arranca pedaços. Ou seja, a ideia de tempo é espacializada, é indicada pela instalação de seres que alteram a construção monumentalizada. Os musgos são a metáfora de uma duração porque se inscrevem nas paredes, deixam sua marca, seu rastro para então, em um gesto de de interrupção e manutenção – do casarão –, serem retirados. Aos poucos, o arruinamento do casarão é adiado. O jato de alta pressão de água retira os musgos e também limpa as marcas escurecidas do caminho da chuva. Uma massa de cimento cobre as rachaduras, espaços do terraço são interditadas aos visitantes, as torneiras da sala de banho são fechadas, evitando vazamento.

Assim, quando os visitantes-habitantes do Parque Lage percorrem os espaços do casarão, dos jardins, eles estão também caminhando sobre esse tempo espacializado, resultado de adiamentos, cuidado, suor, cansaço mas também resultado da tentativa incessante das plantas, dos musgos, dos macacos, em produzir marcas. Estas parecem insistir reiteradamente na fragilidade das ideias dualistas de cidade/natureza. A necessidade de manutenção acaba sendo o motivo da instalação dos habitantes-trabalhadores dos jardins que desempenham suas tarefas com dedicação. Eles moldam o tempo, inscrevem, com seus corpos, uma passagem de tempo invertida, que recupera, que repete o que já passou, um muro que era limpo e sem musgos há vinte anos atrás e que agora volta a ser sem musgos, mas um pouco mais desgastado que há vinte anos atrás. Cuidado e manutenção se mesclam e se desestabilizam, uma vez que o cuidado é aqui habitar e traçar caminhos repetitivos, enquanto manutenção é iniciativa de fixação de um estado, mas uma ideia depende da outra e as duas são dinamicas no tempo, mesmo que pareçam fixas.

Assim, após a manutenção, as fotos dos visitantes-turistas-habitantes será agora muito mais parecida às fotos daqueles outros turistas há vinte anos atrás. Exceto pelas novas tecnologias fotográficas, pelas cores agora captadas com perfeição pelas câmeras dos celulares, os gestos, as poses provavelmente se repetem. Há, assim, uma continuidade no tempo, há uma indicação de que a herança da imagem também precisa do adiamento do fim. A foto também faz o trabalho da manutenção do lugar. Ela tece a ele as memórias pessoais e coletivas.

 
 

Mas então emerge a questão, como uma interrupção: por que algumas construções exigem um processo incessante de manutenção enquanto outras não? De onde vem essa exigência? Talvez venha, como foi dito, da necessidade do cuidado, da segurança ao acesso, da preparação a uma visualidade que faça repetir o tempo em imagens, poses, enquadramentos. Sendo assim, se alguns locais são dignos de cuidado, são eles também dignos de serem experienciados, experimentados, transformados em imagem, tecidos em memória, como o casarão do Parque Lage. Outros lugares, por outro lado - e aqui se instala uma dualidade – não podem ou, não devem, carregar a possibilidade do cuidado. Seu fim não pode ser adiado. Mais do que isso, seu fim é desejado e seu acesso é interditado não apenas pelo perigo de desabamento que representam, mas, talvez, pelo perigo serem a territorialização de um tempo que pode fazer desabar a ideia de que o fim da estrutura, da construção de concreto, do monumento histórico, pode ser adiado.

 
 

Que lugar é esse e de que se trata esse fim? O lugar é a Oca do Parque Lage, desenhada e construída em arquitetura Huni-kuin, que, em um passado muito recente foi refúgio, abrigo e pequeno território de passagem dos artistas e ativistas indígenas que expõem suas artes no Parque Lage. De que se trata esse fim ao qual nos referimos? Trata-se do fim iminente da vida humana que insiste em ser alienada da vivência com a terra, com as plantas, com o vento, com as águas, com as rochas, com mamíferos, pássaros, insetos. 

Vangri Kaingang é uma das artistas que expõem seus trabalhos no chão, na entrada do parque. Ela diz que tanto as árvores quanto pássaros e mamíferos terrestres são seus ancestrais. Um dia ela foi uma planta e com isso aprendeu a ter paciência. Um dia ela será um inseto e aprenderá que a vida é frágil e fugaz. Sua ancestralidade desenha no corpo uma relação específica com o outro, com o não-humano, compondo seu corpo de agora em um encontro de tempos, talvez uma outra manutenção. 

Vangri Kaingang, assim como Garapirá Pataxó, passam muitas horas de seus dias no chão, trabalhando com a venda das bio-jóias porque a Oca foi queimada. Ao invés de passar por uma reforma, que, inclusive, faz parte do planejamento de grupos indígenas e não-indígenas que querem contribuir com sua recuperação, permanece interditada. O que faz com que certos espaços mereçam manutenção, mereçam ter seu arruinamento adiado enquanto outros espaços não apenas não mereçam manutenção mas, além disso, são expostos a um aceleramento criminoso de sua destruição? A que lacunas somos expostos ao nos depararmos com a diferença do cuidado? Quando uma Oca é criminosamente queimada, o que queima com ela? Que possibilidades de tecido de memória se perdem? Quais fotos deixarão de ser registradas, que relações com o espaço deixarão de ser, imaginadas, repetidas?

 
 

Vangri e Garapirá resistem. Expõem suas artes em um local que não os acolhe. Inscrevem nas suas conversas com os transeuntes outras possibilidades de permanecer no espaço. Suas falas são repletas de sugestões de como poderíamos, como humanos, enfraquecer o julgamento dual que nos separa do que chamamos natureza. Jogar mais, brincar mais, correr, cheirar, nadar, envolver o corpo com as folhas das árvores. Dançar, ser árvore, cachorro do mato, mosquito. Seria essa uma salvação para a humanidade que se avizinha à catástrofe global? Talvez haja algo aqui muito menor e muito menos messiânico ou pretensioso. Talvez brincar com a terra, habitar os espaços, imaginar outras relações possam, ao menos, nos ajudar a olhar mais para a nossa capacidade de manipular o tempo em interrupções, dilatá-lo, contraí-lo, cristalizá-lo, curvá-lo de modo que os espaços possam também ser mais maleáveis, vivíveis. Espaços de cuidado.

 
 
 

QUOTE AS:
Nayla Ramalho & Maurício Chades. Interrupções inconsistentes: o tempo, a pose e um pouco de natureza. The Living Commons Collective Magazine. N.3, September 2025. p. 193-202

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