Metamorfoses diluvianas em uma letra de coco do Mestre Matinho Fulni-ô

by

Suene Honorato

 (English version available soon)

Em 2002, o grupo de coco Fethxa, formado por indígenas Fulni-ô e liderado por Mestre Matinho, lançou o álbum Cantando com o sol. Mestre Matinho é pifeiro e autor das composições. Na capa do álbum, vemos o desenho de dois indígenas tocando búzio, instrumento sagrado reservado aos homens e usado durante o ritual do toré (ou tolê), no qual os Fulni-ô rememoram a visita do Criador e homenageiam seus antepassados (Bittencourt 288). A música “Wakfalastô Seetsowalha (geração do índio)”, segunda faixa do álbum, diz o seguinte:

A geração do índio
vem de outra geração.
Quando o mundo se acabou
com aquele grande diluve,
o índio virou em peixe,
o índio virou em pedra.
Por isso que o índio é
os dono deste Brasil.

Nós somo os primeiro
habitante do Brasil.

Quando as águas se escoaram,
os índio se desviraram,
começaram a andar
pel’essas terras brasileira.
Por isso que o índio é
os primeiros habitante.

Nós somo os primeiro
habitante do Brasil.

Quando Pedro Alv’es Cabral
ele chegou no Brasil,
já encontrou com os índio
nessas terra brasileira.
Por isso que o índio é
os dono deste Brasil.

Nós somo os primeiro
habitante do Brasil.

Como ocorre com outras faixas do álbum, a música é cantada primeiro em yathê (a língua Fulni-ô) e depois em português1. A versão em português da música diz que, depois do grande dilúvio que inundou toda a terra, os indígenas se transformaram em peixe e em pedra. Assim, escaparam da morte, voltando a ser gente depois que as águas secaram. Por isso, são os primeiros habitantes destas terras. Isto é, já estavam aqui quando Pedro Álvares Cabral aportou com sua tripulação.

Para compreender como a narrativa do dilúvio é ressignificada nessa letra, farei uma comparação da narrativa bíblica com duas narrativas indígenas do dilúvio, envolvendo  Makunaima e Tamanduaré, entidades dos povos do circum-Roraima e dos povos Tupi respectivamente. Em seguida comparo uma narrativa dos Fulni-ô com a letra da música de Mestre Matinho. Ao final, ressalto o protagonismo indígena relacionado à defesa da ocupação tradicional do território Fulni-ô como forma de ressignificação da narrativa bíblica em diálogo com a narrativa histórica da invasão colonial.

*

Certamente, a narrativa mais conhecida sobre dilúvio numa sociedade erguida sobre as bases do cristianismo é a de Noé (Gen 6,5 a Gen 8)2. Iahweh, vendo a maldade dos homens, se arrependeu de os ter feito e decidiu “exterminar de debaixo do céu toda carne que tiver sopro de vida” (Gen 6,17). Noé era justo, íntegro e vivia na companhia de Iahweh. Por isso, Iahweh lhe avisou que enviaria o dilúvio e o instruiu sobre a preparação da arca onde ele se abrigaria com sua esposa, seus filhos e as esposas de seus filhos, junto com um casal de cada espécie dos animais que viviam sobre a terra. Depois que as águas secaram, os habitantes da arca desceram à terra para repovoar o mundo. E Iahweh prometeu nunca mais destruir a terra: “Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do homem, porque os desígnios do coração do homem são maus desde a sua infância; nunca mais destruirei todos os viventes, como fiz” (Gen 8, 21).

Ainda que essa seja a mais conhecida, diferentes povos indígenas também contam narrativas de dilúvio. Na história de Makunaima, contada por Clemente Flores (indígena Taurepang) a Devair Fiorotti em 2008, um dilúvio acontece quando Xicö, um dos irmãos Makunaima, depois de uma série de desventuras que incluem a perda do pai e da mãe, decide cortar a árvore Wadaka, uma bananeira. Xicö já havia cortado um pé de pupu para comer as frutas no chão ao invés de subir na árvore para pegá-las. A Cutia3 encontrara esse pé de pupu e vinha comendo a fruta escondida dos irmãos. O Quatipuru4 ajuda os irmãos a localizar a árvore e Xicö decide cortá-la, apesar dos protestos do Makunaima mais velho. Quando os frutos apodrecem e não podem mais ser comidos, os quatro continuam andando e a história se repete: Cutia encontra Wadaka, e come banana escondida; o Quatipuru ajuda os irmãos a encontrarem Wadaka; Xicö, apesar dos protestos do irmão, decide cortá-la. Do tronco, jorra água que inunda a terra.

Cutia, prevendo o dilúvio, se fecha dentro de um oco de pau com mantimentos e fogo. Porém, conforme Clemente Flores conta, os “outros Makunaima, Xicö não, não se preparam não, não se preveniram” (Fiorotti & Flores). Os irmãos sobem em pés de palmeira e aguardam as águas secarem. Todos se salvam. Entretanto, o rabo da Cutia acaba ficando amarelo pois ela ficou presa num oco de pau com fogo dentro: “por causa dessa fumaça, ficou tudo amarelinho assim, fumaçada, amarelo a partir daquele momento” (Fiorotti & Flores). E Wadaka, cortada por um dos Makunaima, é o que vemos hoje do Monte Roraima. Do lado do Brasil, caiu o galho mais fecundo para plantio. Portanto, como Flores explica, “é por isso que aqui dá banana, dá de tudo, porque caiu pra cá, porque o galho que é mais fecundo caiu pra esse lado do Brasil” (Fiorotti & Flores).

Xicö, o mais novo dos irmãos Makunaima, é descrito pro Flores em várias passagens como um menino esperto e mau. Essa apreciação do comportamento de Makunaima não tem como consequência uma punição divina, como ocorre na narrativa bíblica. Makunaima não só derruba as árvores como não se previne para a vinda do dilúvio. Se a Cutia poderia ser comparada a Noé por se encerrar num oco de pau com fogo e mantimentos até que as águas sequem, os irmãos Makunaima, também salvos do dilúvio, em nada se relacionam à lógica punitiva da narrativa bíblica. O corte de Wadaka, justificado por uma espécie de capricho de Xicö, tem como consequência a fertilidade da terra onde cai o galho mais fecundo.

Makunaima é um herói cultural que fornece com o corte de Wadaka a “primeira lição de agricultura”, expressão usada por Lúcia Sá em Literaturas da floresta (50) ao analisar as narrativas de Akuli e Mayuluaípu sobre o corte de Wadaka transcritas por Koch-Grüberg no começo do século XX5. Ao invés de colocar em evidência a dicotomia do bem contra o mal, as narrativas do circum-Roraima, compostas pela inserção de fragmentos etiológicos em histórias (etiológicas ou não) mais longas, “[…] realçam, com humor, a transformação das espécies e a constante metamorfose da natureza” (Sá 51). Se há quem defenda que as narrativas de dilúvio do circum-Roraima sejam fruto do contato com missionários cristãos, Lúcia Sá entende que elas se assemelham mais ao “dilúvio presente na maior parte das cosmogonias americanas e descrito nos códices do México pré-cortesiano” (56). A comparação entre as narrativas do circum-Roraima e a narrativa bíblica evidencia diferenças de cosmovisão em relação a dicotomias como bem versus mal, trabalho versus ócio, floresta versus roça, cultura versus natureza.

Clemente Flores aponta fontes que sustentam o seu relato: 1) a história ouvida do pai, 2) a recepção das palavras vindas dos que fazem parte da história – “o que estou contando é o que eles me falaram, me contaram” (Fiorotti & Flores) e 3) a letra dos Makunaima grafada na Pedra Pintada – “Aí chegou na Pedra Pintada, chegou lá e pintou. Tá ali a letra dos Makunaima. Até eu mesmo vou lá e estou olhando lá” (Fiorotti & Flores). A transcrição feita por Fiorotti a partir da fala de Flores em português e publicada em edição bilíngue (português e taurepang) opera como tradução da tradução. Fiorotti traduz para a escrita alfabética a fala de Flores que, por sua vez, traduz a fala do pai, a fala dos que agem na história e por fim a leitura da letra dos Makunaima na Pedra Pintada. Ao final, Flores diz: “[…] eu não estou repetindo pra você, estudando na Bíblia, então vai acabando” (Fiorotti & Flores). A Bíblia é evocada por Flores como referência de narrativa que não será esquecida.

Semelhanças e diferenças entre narrativas de dilúvio indígenas e a bíblica também podem ser observadas em torno de Tamandaré ou Tamanduaré, entidade dos povos Tupi. Essa entidade é referida no romance O guarani, de José de Alencar, que narra a história de Peri, indígena que renuncia a viver com seu povo para proteger  Cecília, filha de Dom Antônio de Mariz, um fidalgo português que se estabelecera no Brasil. Ao final, quando o solar dos Mariz é destruído pelos Aimorés, Peri consegue salvar Cecília. Na beira de um rio, percebendo que uma tromba d’água se aproxima, Peri conta a Cecília a história de Tamandaré (397). Alencar informa em nota que se trata do “Noé indígena. A tradição rezava que na ocasião do dilúvio ele escapara no olho de uma palmeira, e depois povoara a terra” (406). As semelhanças com a narrativa bíblica são mantidas nessa versão contada por José de Alencar: ao contrário dos seus convivas, Tamandaré vivia na companhia de Deus e se salva do dilúvio junto com sua esposa. Peri usa a mesma estratégia de Tamandaré para se salvar com Cecília de uma tromba d’água. O beijo do casal nas últimas linhas do romance sugere que de Peri e Ceci surgiriam as novas gerações que povoariam as terras brasileiras.

Já em Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, pesquisador e tradutor que “restaurou” o mito Tupinambá a partir do texto de André Thevet (e de outras fontes), a narrativa do dilúvio universal protagonizada por Tamanduaré e seu irmão gêmeo e rival Guaricuité é mais distante da narrativa bíblica. Eram irmãos por parte materna, filhos de Maíra e Sumé, respectivamente. Em resposta a um agravo de Guaricuité a Tamanduaré, Maíra “fez toda a taba se elevar em direção ao céu” (Mussa 63). Os irmãos ficaram na terra e Tamanduaré, enraivecido, bateu com o pé no chão, abrindo um buraco do qual jorrou a água que inundou a terra. Subindo nas copas das árvores mais altas, eles se salvam com suas esposas. Depois que as águas terminam de escoar, recomeçam a vida. A narrativa, contada do ponto de vista dos Tupinambá, explica a rivalidade entre os povos descendentes dos irmãos:

De Tamanduaré descendem os tupinambá; de Guaricuité, todos os tobajara: temiminó, maracajá e tupiniquim.
Tupinambá e tobajara são inimigos irreconciliáveis e por isso se matam e se devoram até hoje.
[...] E somos nós, tupinambá, os atuais guardiões da rocha marcada pelo Velho. (Mussa 64).

Se Tamanduaré era “bom pai de família” e Guaricuité um matador e devorador de tapuias (Mussa 63), a diferença entre os irmãos não implica em salvação de um e condenação de outro, como na narrativa bíblica em que Iaweh salva Noé e seus familiares e condena o resto da humanidade. Como os irmãos Makunaima, todos são salvos após o dilúvio. Mas aqui a diferença justifica a rivalidade, importante para pensar a vingança como valor fundamental entre os Tupinambá. Como o antropólogo Eduardo Vivieros de Castro explica em “O mármore e a murta”, a vingança é “uma instituição que produzia a memória” (233) e, portanto, não está inscrita sob a noção de pecado ou de algo condenável. Chama atenção também, no trecho, a referência a uma “rocha marcada pelo Velho”, da qual os Tupinambá são guardiões. Segundo Mussa (262), o Velho seria um demiurgo, o primeiro ser com forma humana, que teria criado algumas espécies animais. Como Makunaima, o Velho deixou registros de sua passagem. A narrativa termina com uma explicação etiológica para a proibição quanto ao consumo de carne de tamanduá, já que Tamanduaré se transformou nesse animal (Mussa 65).

Metamorfoses estão presentes nas narrativas do dilúvio, em torno tanto dos irmãos Makunaima quanto de Tamanduaré – traço ausente do texto bíblico. O corte de Wadaka, como primeira lição de cultivo, transforma a natureza e a relação dos seres com ela: Tamanduaré se transforma em tamanduá, tornando-se ancestral dos Tupinambá. E é justamente uma metamorfose que salva os “índios” do dilúvio na letra de “Wakfalastô Seetsowalha (geração do índio)”, traduzida pelos verbos “virar em/desvirar”: o mundo se acabou com o grande dilúvio, mas “o índio virou em peixe, / o índio virou em pedra”; depois que as águas secaram, “os índio se desviraram” (Fethxa).

No caso da letra de Mestre Matinho, a metamorfose permite aos indígenas escaparem à ira destruidora de Iahweh. Essa estratégia torna visível uma lacuna da narrativa bíblica na qual nada se transforma: o que aconteceu com peixes e pedras no dilúvio? A esse respeito, Iaweh nada informa a Noé. Quando Noé e os seus saem da arca, Iahweh manda: “Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas vossas mãos” (Gen 9, 2), evidenciando uma narrativa centrada no ser humano. A ideia de causar medo e pavor aos seus convivas animais é estranha ao reconhecimento de um deles como ancestral ou como herói cultural, como é frequente em narrativas indígenas. 

A metamorfose, nessas narrativas, indicia o quão distantes elas se fazem do texto bíblico, já que as relações entre humanos e não humanos, ou entre não humanos de tipos diversos, prescindem da ideia de domínio dos humanos sobre não humanos. No caso das três narrativas aqui referidas, as transformações indicam momentos marcantes na vida coletiva dos grupos: a transformação dos indígenas em peixe e pedra e posterior retorno à forma humana marcam a anterioridade dos Fulni-ô em relação aos colonizadores nas terras brasileiras; a transformação de Wadaka em monte Roraima marca a primeira lição de agricultura; a transformação de Tamanduaré em tamanduá marca a ancestralidade dos Tupinambá em relação a esse animal. As metamorfoses se relacionam com processos de aprendizado cultural, muitas vezes regidos por seres não humanos.

Ao contrário do que lemos nas narrativas indígenas, a centralidade do humano na narrativa bíblica tende a se aproximar do discurso moderno-capitalista de exploração da “natureza”. A viabilidade e a validação social dessa exploração passa pela inferiorização dos não humanos, considerados como incapazes de produzir ou ensinar cultura e colocados à disposição dos humanos — mas não de todos os humanos, pois alguns grupos humanos não serão considerados como tal. Apartado da “natureza”, sendo fonte de medo e pavor para os seres não humanos, o ser humano na narrativa bíblica do dilúvio prefi- gura o colonizador. Poderíamos dizer que o dilúvio bíblico serve como narrativa etiológica da sociedade capitalista.

*

Mas o texto bíblico talvez não esteja tão distante da história dos Fulni-ô. Digo “talvez” porque, não sendo antropóloga e não tendo realizado trabalho de campo, continuo com muitas perguntas sem resposta olhando para a bibliografia a que tive acesso. E, quando se trata dos Fulni-ô, essa parece ser a regra. Na introdução de uma coletânea de artigos de diversos autores sobre os Fulni-ô, Peter Shröder diz que é difícil escrever sobre eles pois fazem questão de manter “segredos culturais e linguísticos” além de terem fama de “contestadores categóricos de tudo o que é falado e escrito sobre eles por não Fulni-ô” (3-4). Isso ocorre principalmente em relação à religião étnica, “domínio em torno do qual os segredos são guardados com maior ênfase” (Shröder, 10).

Os Fulni-ô habitam o município de Águas Belas, no agreste pernambucano. A cidade foi erguida em torno de uma igreja cujas terras teriam sido doadas por eles à Nossa Senhora da Conceição em 1832. A história é narrada por uma parte dos Fulni-ô como uma estratégia do “branco” para se apossar das terras indígenas. Abdon dos Santos, professor Fulni-ô (Bittencourt 52), diz que os “brancos” fizeram uma santa de madeira e colocaram em um lago e que os indígenas retiraram a santa do lago e levaram para a aldeia. Um “branco” retirou a santa da aldeia às escondidas e a devolveu para o lago. O evento se repetiu algumas vezes até que um padre explicou aos indígenas que a Santa estava pedindo terra. A terra teria sido doada pelos indígenas para a construção da igreja. Segundo informação do site Terras indígenas6, a Terra Indígena (T.I.) Fulni-ô foi demarcada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1926 – um quadrado de 12 mil hectares dividido em lotes individuais, parte dos quais passou a ser arrendada a não-indígenas. No centro da T.I., está a cidade de Águas Belas. Como a T.I. não passou pela etapa de desintrusão, os conflitos territoriais nunca cessaram. Ainda segundo o site Terras indígenas, existem hoje 26.300 indígenas na área.

Em Águas Belas existem duas aldeias: a aldeia do Posto Indígena e a aldeia do Ouricuri. A segunda aldeia é o local em que se realiza o rito do Ouricuri, mantido em segredo pelos Fulni-ô. No verbete sobre os Fulni-ô publicado no site Povos indígenas no Brasil, Jorge Hernández Díaz (2018) comenta que a participação no ritual, desde a infância, é imprescindível para o reconhecimento, dentro do próprio grupo, de quem é ou não Fulni-ô. Para Sérgio Neves Dantas em “Processos interculturais de identidade religiosa: os Fulni-ô” (2007), o segredo é o modo singular como os Fulni-ô lidam com a exi- gência de um “sinal diacrítico” em relação à sociedade não indígena – exigência que surge no contexto de enfrentamento às sucessivas tomadas de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Embora o direito às terras tenha sido garantido aos indígenas ao longo da história brasileira a partir da invasão colonial, uma série de estratégias foi utilizada para invalidar esse direito7, incluindo o genocídio e o etnocídio. A deslegitimação do pertencimento étnico — uma das estratégias etnocidas — afetou de forma drástica os povos de primeiro contato, como são os do Nordeste brasileiro. Por isso, a partir do século XX, esses povos passaram a reivindicar o reconhecimento público desse pertencimento a partir de sua diferenciação em relação aos não indígenas. Se outros grupos passaram a apresentar/exibir sua cultura como modo de se diferenciar, “[n]o caso Fulni-ô, tal visibilidade cultural realiza-se, segundo creem, no seu reverso – a invisibilidade, o segredo” (Dantas 151). Díaz (“Fulni-ô”) afirma que “[t]odos os Fulni-ô têm como norma a proibição de falar do ritual. Os anciãos asseguram que aqueles que infringiram esta norma tiveram morte estranha”.

Ao lado da religião étnica, há entre os Fulni-ô uma forte presença do catolicismo. Em Fluxos de comunicação Fulni-ô Bittencourt (52) entende que o catolicismo, sendo ressignificado constantemente, se consolidou entre os Fulni-ô. Por exemplo, Nossa Senhora da Conceição se transformou em Yasaklhane (“nossa grande/santíssima mãe”). Não é de se estranhar, portanto, que entre eles a narrativa do dilúvio se aproxime em alguns pontos da narrativa bíblica. Bittencourt (413-414) também registrou em seu diário de campo uma versão em que, depois de um dilúvio enviado por Deus para castigar o povo, restaram dois sobreviventes, uma mulher e um homem indígenas. Esse casal foi visitado pelo filho de Deus, que teria vindo verificar quem havia sobrevivido ao dilúvio. As gerações formadas a partir desse casal um dia se lembraram daquele visitante e entenderam que haviam sido escolhidas por Deus para permanecerem vivas na terra. Passaram então a cultuar esse Deus, louvando-o com toré e maraca. Depois, surgiram outros povos, chamados “brancos”, que tentaram destruir os indígenas e acabaram por dividi-los, surgindo outras aldeias. Em Águas Belas, onde os Fulni-ô se estabeleceram, os “brancos” tentaram se apossar das terras indígenas usando para isso a história da santa de madeira.

Dantas já havia registrado uma versão parecida, narrada por Marilena, em que os Fulni-ô são escolhidos por Deus, pela observância aos Seus princípios, como sobreviventes do dilúvio e por isso têm obrigação e compromisso “para com Ele, perante Sua criação” (163). Diz a letra de uma música cantada pelos Fulni-ô: “Quando o padre visitou nossa aldeia, Jesus já estava lá…” (Dantas “Sagrado canto Fulni-ô” 204). Esses dois registros tornam evidente o protagonismo Fulni-ô como modo de lidar com narrativas bíblicas. Ao invés de tratá-las como imposição externa à sua cultura, as colocam como elementos centrais de sua vida religiosa. As versões registradas por Dantas e Bittencourt seguem a linha da narrativa bíblica de Noé em relação à vingança de Deus contra uma humanidade que desrespeitou um pacto previamente estabelecido, mas, no lugar de Noé e sua esposa, está o casal Fulni-ô, eleito para renovação do pacto de culto e cumprimento dos princípios divinos. Dantas (“Processos Interculturais” 162) defende que “os depoimentos [...] que integram a narrativa bíblica Fulni-ô do dilúvio re-enviam à História a verdade bíblica”, colocando o dilúvio “[...] no centro mesmo de sua origem ancestral” (Dantas 161). O protagonismo Fulni-ô nas narrativas do dilúvio, em que ocupam o lugar de eleitos do Criador/Deus, ressignifica a presença do cristianismo entre eles e evidencia as estratégias de apropriação do que vem de fora para a manutenção da cultura e dos rituais Fulni-ô.

Mas a letra de “Wakfalastô Seetsowalha (geração do índio)” conta uma história um pouco dife-

rente. Sobre ela, Mestre Matinho disse durante uma oficina de formação Fulni-ô registrada em vídeo8, que era um samba velho dos antepassados. O “samba velho”, portanto, diria respeito à musicalidade, sendo a letra criada por Mestre Matinho? Ou o modo como a narrativa do dilúvio é contada nessa música vem de seus antepassados? Não tenho resposta. Posso dizer apenas que em nenhum outro lugar encontrei versão semelhante da narrativa do dilúvio entre os Fulni-ô. Seja como for, tanto a versão do casal indígena visitado pelo filho de Deus quanto a versão da transformação dos indígenas em peixe ou pedra para escapar ao dilúvio são modos de afirmar hoje a anterioridade dos Fulni-ô em relação aos invasores “destas terras brasileiras”.

A letra de “Wakfalastô Seetsowalha” começa dizendo que “a geração do índio / vem de outra geração” e marca a anterioridade dos indígenas como habitantes destas terras em relação ao dilúvio e, portanto, em relação à chegada de Pedro Álvares Cabral. O evento mítico é narrado como anterior ao evento histórico e estabelece com ele uma relação de continuidade. Nessa continuidade, “mito” e “história” se tornam categorias que desempenham funções semelhantes (não hierarquizadas) na narrativa da ocupação tradicional da terra pelos indígenas e assim mobilizam um tempo de longa duração que ecoa em direção ao passado: “a geração do índio / vem de outra geração”, que vem de outra, que vem de outra, que vem de outra.

A ideia de território tradicional não tem a ver apenas com a categoria de espaço, mas também com a categoria de tempo. Afinal, como diz a letra de “Wakfalastô Seetsowalha (geração do índio)”, antes do dilúvio os indígenas já ocupavam estas terras que vieram a se chamar Brasil. Sobreviventes do dilúvio, ou por terem se transformado (segundo a letra da música), ou por terem sido eleitos por Deus (segundo as versões Fulni-ô do dilúvio), os indígenas estavam aqui muito, muito antes de Pedro Álvares Cabral chegar. Por isso, “nós somo os primeiro / habitante do Brasil”.

A mobilização de um tempo de longa duração para afirmar a anterioridade da presença indígena no território brasileiro é frequente no modo como intelectuais, lideranças e artistas indígenas definem sua identidade étnica9. As categorias de tempo/espaço e identidade étnica se relacionam na afirmação da presença diferencial desses povos na vida brasileira em relação aos não indígenas. O acesso a esse tempo anterior ao colonialismo se faz pela oralidade, em processos complexos de transmissão e reelaboração de memórias e saberes coletivos. Essa memória, construída entre gerações que vêm de outras gerações, como na letra de Mestre Matinho, ecoa o passado e aponta para o futuro. Os primeiros habitantes continuarão sendo, como sempre foram, os donos da terra.

*

Encontrei o álbum Cantando com o sol ao fazer uma pesquisa sobre grupos de coco10 no Brasil. Quando escutei “Wakfalastô Seetsowalha (geração do índio)” achei graça na estratégia de o indígena virar/desvirar em peixe e pedra para se salvar do dilúvio. Mas me pareceu que havia algo além de esperteza nessa estratégia. Isso me levou a pesquisar outras narrativas indígenas sobre dilúvio. Ao menos nas três que reuni aqui, me parece que a metamorfose é um elemento fundamental para a compreensão da relação dos humanos com os não humanos e, consequentemente, para o modo de lidar com a terra que compartilham. Ter sido peixe, pedra, tamanduá ou saber que o toco de uma árvore mítica testemunha a primeira lição de agricultura certamente abre possibilidades de relação com o lugar e com os seres não humanos que confrontam a lógica destrutiva da ideia de posse no capitalismo.  

Referências bibliográficas

Alencar, José de. O Guarani. Obra Completa, vol. 2, José Aguilar, 1958, pp. 5-406.

Bíblia de Jerusalém. Paulus, 2002.

Bittencourt, Miguel Colaço. Fluxos de Comunicação Fulni-ô: Cosmologia, Territorialidade e Performance. 2022. Universidade Federal de Pernambuco, PhD dissertation.

Cunha, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Claro Enigma, 2012.

Dantas, Sérgio Neves. “Processos Interculturais de Identidade Religiosa: O Mundo Fulni-ô.” Caminhos, vol. 5, no. 1, 2007, pp. 149-77.

---. “Sagrado Canto Fulni-ô: Por uma Causa, uma História, um Pertencer.” Cultura, Identidade e Território no Nordeste Indígena: Os Fulni-ô, edited by Peter Shröder, Ed. Universitária da UFPE, 2012, pp. 187-205.

Díaz, Jorge Hernández. “Fulni-ô.” Povos Indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Fulni-%C3%B4. Accessed 13 Nov. 2024.

Fethxa: Cantando com o Sol. Performance by Fethxa, João Pessoa, 2002, https://www.youtube.com/watch?v=Waha2FMpWTs&t=2009s. Accessed 13 Nov. 2024.

Fiorotti, Devair, and Clemente Flores. Panton Pia’: A História do Macunaima. Wei, 2019.

Mussa, Alberto. Meu Destino é Ser Onça: Mito Tupinambá Restaurado. Record, 2009.

Sá, Lúcia. Literaturas da Floresta: Textos Amazônicos e Cultura Latino-Americana. EdUERJ, 2012.

Shröder, Peter. “Introdução.” Cultura, Identidade e Território no Nordeste Indígena: Os Fulni-ô, edited by Peter Shröder, Ed. Universitária da UFPE, 2012, pp. 3-14.

Viveiros de Castro, Eduardo. “O Mármore e a Murta: Sobre a Inconstância da Alma Selvagem.” A Inconsância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia, Cosac Naify, 2002, pp. 183-264

QUOTE AS:

Suene Honorato. Metamorfoses diluvianas em uma letra de coco do Mestre Matinho Fulni-ô. The Living Commons Collective Magazine. N.3, September 2025. p.

Notes

1 Só tive acesso à música através da versão postada no Youtube. A transcrição da letra em português foi feita por mim. Portanto, a divisão em estrofes e versos, a pontuação e a grafia são escolhas minhas em relação ao texto oral.

2 Utilizo aqui a edição da Bíblia de Jerusalém (2002), mas adoto para as referências a abreviação do nome do livro, seguida do número do capítulo e do versículo, para facilitar comparações com outras edições do texto bíblico.

3 Roedor de pequeno porte.

4 Espécie de esquilo.

5 As narrativas haviam sido publicadas em 2002 pela editora Perspectiva em Makunaima e Jurupari: cosmogonias ameríndias, organizado por Sérgio Medeiros. Em 2022, a editora da Unesp publicou tradução integral dos três volumes do livro Do Roraima ao Orinoco: resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913, de Theodor Koch-Grüberg. As narrativas se encontram no volume II.

6 Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3667. Acesso: 20 de novembro de 2024.

7 Cf. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania, de Manuela Carneiro da Cunha.

8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WmsinTjcnfM. A declaração citada encontra-se a partir dos 21 minutos. Acesso: 19 de novembro de 2024.

9 Esta é uma síntese da minha pesquisa de pós-doutorado realizada em 2023, supervisionada por Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Parte do resultado da pesquisa está publicado no e-book Gentes do mundo: “identidade” e território em textos indígenas e outros assuntos, disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/81306/1/2025_liv_shonorato.pdf.

10 O coco é uma brincadeira ou prática cultural presente em diversos estados do Brasil, principalmente no Nordeste. Suas realizações são bastante diversas.

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